
Qualquer brasileiro com mais de 30 anos reconhece a estratégia descrita por uma americana em uma rede social há duas semanas.
Katie (nome fictício) queria saber se seria ilegal comprar US$ 2.400 em produtos no site chinês Alibaba, enviá-los ao México e ir de carro buscá-los.
Torcendo para não ser pega na alfândega, ela voltaria aos EUA com matérias-primas para bijuterias e artesanatos sem pagar os 145% de tarifas então impostas pelo presidente Trump sobre produtos chineses.
Àquela altura, isso elevaria o valor a quase US$ 6.000.
Em resposta à guerra tarifária de Trump, os americanos estão descobrindo uma velha conhecida do Brasil: a muamba.
Entre 2 e 14 de maio, vigoraram tarifas de 145% sobre produtos chineses que entravam nos EUA e 125% sobre produtos americanos que entravam na China.
Em seguida, um armistício econômico de 90 dias acertado entre os dois países reduziu as taxas para 30% e 10%, respectivamente.
Desde o dia 2, a Casa Branca também extinguiu os chamados "de minimis", a isenção de tarifas e impostos para pacotes de até US$ 800.
Desde então, o UOL vem registrando relatos criativos de americanos tentando driblar o que se tornou, na prática, um embargo comercial à China.
Especialistas alertam que, embora mais brandas, as novas tarifas não resolvem o impasse entre vendedores e compradores dos dois países.
A muamba, velha conhecida dos brasileiros, pode se tornar prática corrente nos EUA em 2025.
A viagem que Katie planejava lembra a prática comum das sacoleiras brasileiras nos anos 1990.
Na época, elas enfrentavam longas jornadas de ônibus até Ciudad del Este, no Paraguai, para comprar produtos chineses a preços baixos, escapando de impostos e tarifas alfandegárias cobradas no Brasil.
O México não tem tarifas, e moro a alguns minutos de carro da fronteira. Poderia comprar da China e mandar entregar lá? Guardas não vão atentar para alguns poucos itens no meu carro, certo? Americano que tentou descobrir como comprar painéis de LED infravermelhos

A tentação da muamba
"Esse tipo de manobra é tentador, mesmo irregular. Não importa se estamos falando de brasileiros nos anos 1990 ou de americanos agora. É o comportamento humano esperado", diz o economista Otaviano Canuto, pesquisador do Policy Center for the New South.
Morador de Washington e estudioso das trocas entre EUA e China, Canuto já foi vice-presidente do Banco Mundial, diretor-executivo no Fundo Monetário Internacional (FMI) e vice-presidente no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
No caso de Katie, outros usuários da rede social a alertaram que sua ideia poderia ser considerada sonegação fiscal ou mesmo contrabando de mercadorias.
Pelas regras americanas, cidadãos do país podem regressar do exterior com o equivalente a US$ 800 em compras por mês, sem que estejam sujeitos à taxação.
Valores superiores devem ser declarados ao Customs and Borders Patrol (CBP) —pagando-se impostos regulares e as tarifas que a gestão Trump criou.
Mas se as compras têm objetivo comercial e não são para uso pessoal, as regras mudam e as multas e punições podem ser ainda mais severas.

"Pareceu desaconselhável", afirmou Katie, mãe de um bebê e microempreendedora, ao anunciar que, por ora, desistiria da excursão.
Mas houve quem se dissesse interessado em seguir esse tipo de plano.
"É ilegal, mas tenho certeza que muitos pequenos negócios farão parecido", disse um dos interlocutores na página especializada em importação da China chamada "Compras Turbulentas".
Segundo o Censo dos EUA, 49% das empresas americanas têm apenas entre 1 e 4 funcionários —ou seja, são micronegócios.
Grandes empresas, com capital de giro e capacidade de antecipação, intensificaram compras de estoque no exterior no primeiro trimestre de 2025, antevendo a criação das tarifas.
Mas essa não é realidade das pequenas.
Pequenos negócios dependem da mercadoria barata chinesa, e mesmo as tarifas atuais de 30% representam alto custo. Por isso, os incentivos econômicos são fortes o suficiente para que as pessoas se arrisquem com a muamba Otaviano Canuto economista
Vivendo em um país que abriu sua economia cada vez mais a partir da Segunda Guerra, parte da população americana vai aos poucos entendendo que o custo das tarifas cairá sobre seu bolso.
A conversa abaixo entre dois pequenos empresários americanos, à qual o UOL teve acesso, exemplifica isso.
"Tenho firma têxtil e nunca precisei pagar tarifas antes para comprar tecido no Alibaba. Minhas compras giram entre US$ 1.500 e US$ 3.000. Como as tarifas me afetam agora?", perguntava o primeiro deles, em meados de maio.
O segundo empresário, do ramo de cosméticos, responde: "Vamos supor que o preço da sua matéria-prima seja US$ 3.000. Se você importar da China, o custo total será de US$ 6.120. Na prática, torna-se impossível".
O primeiro empresário se mostra chocado: "Isso é selvagem".
Em resposta, o segundo afirma que tem trazido parte de seus produtos via Canadá, o que ajudaria a driblar as taxas impostas à China.
Quem trabalha com política externa no país já antevia há meses esse cenário.
Em janeiro, pouco antes da posse de Trump, uma diplomata americana admitiu ao UOL que reforçou suas compras de roupas na Shein prevendo que as taxas futuras de Trump poderiam dificultar a renovação do guarda-roupa.

Made in USA?
Uma das motivações de Trump para criar tarifas é a ideia de que, ao inviabilizar a compra no exterior, ele forçará a produção nacional de certos bens e reindustrializará o país.
O Estados Unidos viram suas grandes metrópoles industriais, como Detroit, entrarem em crise com a mudança de parcela da produção fabril para México e Ásia.
A estratégia é conhecida como substituição de importação e foi tentada no Brasil e no restante da América Latina entre as décadas de 1940 e 1980, sem sucesso.
"Ao menos no Brasil, com o êxodo da população rural para as cidades, houve um aumento dos índices da eficiência econômica. Nos EUA, nem isso acontecerá", afirma Canuto.
Para satirizar a Casa Branca, chineses inundaram a internet com memes de homens brancos de meia-idade, obesos, sentados em máquinas industriais antigas, com um cachorro-quente na mão e um tênis na outra.
"É uma fantasia tentar voltar àquela indústria manufatureira de 30 anos atrás. Uma fantasia bem vendida e que colou, mas que deve levar a economia americana a ser menos produtiva, gerando inflação", avalia Canuto.
Segundo ele, a dor provocada pelas tarifas de Trump ainda mal começou e deve se intensificar com o passar dos meses.
O cenário pode ainda se agravar se, como ameaça, o governo distribuir nova rodada de tarifas aos parceiros europeus ou a qualquer outro país.
Canuto diz que vendedores chineses tentarão converter seus produtos de "made in China" em "made in Mexico" --ou em "made in qualquer outro lugar para escapar de tarifas".
Em alguma medida, isso já vinha sendo feito por setores como a siderurgia chinesa, atingida no primeiro mandato de Trump por tarifas e restrições.
A prática, porém, pode se tornar ainda mais comum.
O plano já circulava entre produtores chineses, como explicou um deles em outro fórum de discussão de vendedores listados pela Amazon.
"A ideia é enviar da China para o México, idealmente com uma tarifa baixa. Fazer alguma montagem leve ou reembalagem lá. E daí enviar para os EUA por caminhão ou barco, preferencialmente para Los Angeles. Esperamos que, se houver modificação suficiente no México, possamos listá-lo como 'Feito no México' e aproveitar os benefícios do (acordo de livre comércio) USMCA, como tarifas mais baixas ou nenhuma tarifa".
Em tempos de muamba, especialistas acreditam que é só uma questão de tempo para os americanos perceberem que a estratégia de substituição de importação não deve fazer brotar indústrias no Meio-Oeste do país.
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